PARA ONDE VAI TODO LIXO?
O LIXÃO DE CANABRAVA
Antes de discursar sobre o tema, é de suma importância apresentar-lhes com funciona um lixão. E, como o lixão em questão é o de Canabrava, no subúrbio de Salvador-Ba, segue sua apresentação:
O lixão de Canabrava começou a funcionar nos anos setenta, SEM NENHUM PREPARO PRÉVIO da área. Está situado na periferia de Salvador-Ba, em direção ao aeroporto, entre os bairros de Canabrava, Sete de Abril, São Marcus, Novo Marotinho e a invasão São Rafael, bairro de origem da maioria dos badameiros (catadores de lixo) e que surgiram no processo de implantação e expansão do lixão. É distante, aproximadamente, 20 km do centro da cidade. Esta realidade perdurou até o ano de 2011, da existência do lixão e da presença dos catadores de lixo, que chegou a um universo de 1.000 (mil) pessoas que sobreviviam do lixo.
O lixão propriamente dito ocupava uma área de cerca de 62 hectares, formando um quadrilátero irregular. Era delimitado por um lado pela Via Provincial, pela Estrada de Canabrava, pelo Bairro de São Rafael e, em um dos seus lados, pelo estádio Manuel Barradas e também por uma unidade da Limpurb, com alguns escritórios e a balança, onde os caminhões pesavam suas cargas de lixo e material para reciclagem.
Havia uma encosta, neste local, que eram utilizadas como faixas (utilizando uma explicação a grosso modo) para permitir que acesso aos caminhões, que jogavam o lixo nos locais adequadamente preparados, ou nas células biodigestoras, supostamente obedecendo a norma de engenharia sanitária, a fim de evitar danos ao meio ambiente.
As células passam primeiro por um processo de nivelamento. Depois, a área é preparada com extrato de argila para impedir a contaminação e a poluição da água. Ao redor é colocado um sistema de drenagem, para o tratamento de líquidos e gases (chorume) produzidos durante o processo de decomposição do lixo. Os líquidos deveriam ser drenados e direcionados para um ponto de captação; infelizmente isto nem sempre acontecia, devido a problemas técnicos e econômicos, causando a formação de enormes poças de chorume, altamente poluentes, que representam um perigo à saúde dos catadores de lixo.
No topo dos pontos de captação dos gases, há uma manilha de ferro que permite a saída controlada dos mesmos, neutralizando-os através de um processo de combustão controlada e dando origem a chamas invisíveis durante o dia, por causa da sua coloração clara, mas que aparecem durante a noite e a iluminam.
Uma célula tem vida útil média de 4 meses, mas, no lixão de Canabrava, devido a problemas de espaço, as células eram reutilizadas e duravam até 6-7 meses. Uma vez terminada a construção, é preparada a via de acesso. Os caminhões entram e descarregam o lixo nas proximidades e deixam os tratores levá-lo até as células. O lixo que chega é despejado na parte mais baixa, próximo ou diretamente dentro da célula. A ele era deixado alguns minutos para que os badameiros fizessem sua “seleção”. Em seguida, os tratores transportam o lixo para as células, onde ele é tratado e compactado. Novas descargas são efetuadas ao lado do lixo recém depositado até completar toda célula. Enquanto isto, outra célula está sendo preparada para nova descarga de lixo.
CIDADANIA? IGUALDADE SOCIAL?
O mestre em Sociologia Gabriele Grossi, italiano radicado em Salvador, conviveu no lixão de Canabrava, em 1997, entre os meses de fevereiro a outubro, e relatou sua valiosa experiência no livro “O Luxo do Lixo”. Junto com uma pequena equipe, pode experimentar o que é “viver” do lixo, numa comunidade à parte da sociedade, completamente excluída e tratada com desprezo e como “bichos”, não como seres humanos. Não eram, para a sociedade, cidadãos. E os próprios badameiros se põem neste lugar hierárquico inferior, “sabem o seu lugar”. Demonstram, o tempo todo, que o sociólogo e sua equipe são “diferentes”, não são “iguais” a eles. Ensinam às crianças que não devem oferecer-lhes lixo para comer, mas a fonte completa de subsistência dos moradores do lixão é o lixo. Limpam o chão onde a equipe senta (os moradores do lixão se sujam ainda mais ao fazer isto) e ainda cobrem o chão com papelão antes da equipe sentar.
De certo modo, do jeito que vivem, do modo que se apresentam, como convivem, são realmente bichos lutando pela sua sobrevivência. A presença de moscas é uma constante. Não é raro, segundo o autor, na hora do primeiro derrame dos caminhões de lixo, aparecer urubus, porcos, cavalos, burros e cães na luta pelo que há de melhor, que, segundo os catadores de lixo, chegam no primeiro derrame. Mas, enquanto houver derrame, há catador de lixo procurando algo que passou despercebido pelos outros.
O que se tira do lixo pelos catadores, vai de roupa a comida, carne que “dá para aproveitar e até limpar e vender para um mercadinho ali perto revender”, frutas, fardos com “latas de coca-cola vencidas há apenas 1 mês”, bandejas de pães ainda fechadas de padarias finas (vencidas, claro), cadeiras, sofás, sorvetes, fetos, animais mortos e vivos, brinquedos, relógios, televisões, telefones...nesta, época o lixo hospitalar também era descartado junto com o lixo comum no lixão.
A aparência deles é suja. Vestem-se de modo a proteger-se como podem do lixo. Com roupas encontradas no lixo. Mas com um tipo de uniforme. De longe dá para perceber que há o lixão por perto pelo movimento destas pessoas. O arrastar de caixas, sacos, o “comércio local informal” de cafezinho, cigarro e afins.
Os caminhões de lixo são conhecidos, cada qual pelos lixos que trazem. O que traz lixo com comidas é o mais disputado, tem catadores que esperam apenas por ele para ir embora.
Em alguns locais do lixão, deve-se ter muito mais cuidado ao pisar, pois o lugar é lamacento e completamente infectado. O sociólogo e uma auxiliar de sua equipe tiveram o desprazer de terem pisado nestes locais. Depois daí, só andaram de botas sete léguas. Uma moradora do local, na mesma época, caiu em um destes locais e foi internada com uma infecção.
O acesso ao local é outro caso à parte. Os moradores, além da indiscutível falta completa de salubridade, além do chorume, dos gases tóxicos e o cheiro fétido, além de moscas e vetores de doenças, sofrem quando alguém adoece. É extremamente difícil sair do lixão com uma pessoa doente para levar a uma emergência, por exemplo. Ou entrar no lixo, também, com ambulância. Também não há acesso a medicamentos. Grossi presenciou o curso de uma doença renal e cardíaca em uma das badameiras, o desespero de todos para retirá-la de lá e levá-la ao hospital e seu falecimento. Ela não tinha como andar, foi carregada, completamente edemaciada pela doença, numa cadeira, num lugar íngreme, lamacento e com poças onde as pessoas são praticamente engolidas num líquido lodoso e infectado.
Apesar de tudo, quando lhes era pedido para tirar foto, para que registrassem no livro as condições em que os badameiros se encontravam, eles se recusavam. Pediam que esperassem para tomar banho, para “se arrumar”. Questionavam por que de tirar foto tão sujos e desarrumados. Não queriam “eternizar” sua completa miséria e condição sub-humana.
Uma reclamação dos catadores de lixo era sobre a competição dos garis da Limpurb, que constantemente, como são contratados, e tem acesso ao lixo antes deles, e são “cidadãos” , selecionam o que há de melhor no lixo para eles e só deixam “o mocó para a gente” (sic). O sonho de muitas crianças que moram no lixão é ser gari.
É uma constante a resposta de que as pessoas que ali estão foram por causa da fome. A fome muda a percepção da realidade. “A fome devora o futuro”.
A Limpurb envia uma equipe que, aos olhos do autor, funciona como “atores sociais”. Suas funções seriam coordenar o fluxo de caminhões e o trabalho das várias firmas de coleta; decidir sobre onde descarregar o lixo, planejar a preparação das células, organizar o aterramento do material. Nesta equipe, formada por um gerente, um biólogo, um engenheiro civil, um técnico de área, os responsáveis pelos tratores e pela balança, uma assistente social e alguns serventes, há um contato quotidiano com os badameiros, que qualificam as relações como “boas”. Eles destacam a assistente social como “uma amiga” que “ajuda a gente”. A esperança deles é que, sempre que há alguma pesquisa ou alguma visita no lixão, que o governo esteja interessado em matricular as crianças na escola ou dar emprego aos catadores de lixo. Mesmo quando lhes falam que nada disto vai acontecer, eles continuam com a esperança e sonham, verbalizam que aquelas pessoas vão ajudar, que vão conseguir. Uma esperança onde não existe mais nada. Só, realmente a esperança. A fé. A fé em um futuro, não a curto prazo, mas num futuro muito melhor. “Na ausência de expectativas razoáveis, só restam o devaneio ou a utopia”.(Bourdieu, 1979;80).
A EXTINÇÃO DO LIXÃO DE CANBRAVA
A LIMPURB, em 2001, extinguiu o lixão de Canabrava e direcionou o lixo de Salvador para a região do CIA-Aeroporto, onde foi instalado o Aterro Metropolitano Centro. Com isto, a fonte de subsistência dos catadores de lixo foi extinguida. A partir daí, surgiu a Cooperativa de Catadores (CAEC), como alternativa social e econômica dessas pessoas que já trabalham com o lixo e são direcionados para a reciclagem.